E como vos havia prometido aqui ficam as palavras (delicadas) de Maria Elisa Sousa sobre o livro natalício de moi-même e do meu amigo João Pedro Mésseder:
Este é o título de mais um presente que João Pedro Mésseder e Gabriela Sotto Mayor nos fazem chegar às mãos. Num registo bem-humorado e em que o texto e a imagem interagem para construírem sentidos e explorarem possibilidades, o leitor vai conviver com imagens e com os versos de uma narrativa que nos apresenta duas personagens, quase faces da mesma moeda. Menino Jesus? Pai Natal? Tempos que se cruzam e tanto se distanciam! Quanto tempo separa o maiúsculo Menino do maiúsculo Papá?
Os dois são maiúsculos porque se distinguem, possuem identidade bem definida, como é próprio dos nomes próprios, ora dos meninos que recebem presentes, ora dos papás que oferecem os presentes que os meninos recebem.
Ao percorrer estas páginas de Natal, ouvimos uma voz que dá conta das suas memórias de criança, de uma infância tempo de mistérios e de simplicidade, em que os presentes de Natal cabiam na chaminé, para serem deixados nos sapatos ou nas meias dos meninos por um outro menino, especial e maiúsculo, que seleccionava os pedidos e distribuía com parcimónia os presentes, que podiam ser saboreados com demora, sem pressas e com o carinho devido às coisas que sabem a conquista:
Descia p’la chaminé / num rumor inquietante/ e do muito que eu pedira / deixava só o bastante
Mas este tempo de menino parece ter acabado e outros tempos, outros seres haveriam de aparecer. O Natal tempo-de-infância, em que os meninos esperavam, com encanto e mistério, por um outro Menino, cede lugar ao Natal de um senhor com sinais de velho menino, pesado e volumoso em demasia para poder caber na chaminé. Vinha de longe esse senhor e também trazia presentes:
De um senhor de barbas brancas / um maiúsculo Papá / vindo dos confins do Norte, / só mais tarde ouvi falar
Também trazia – oh que sorte! / muitas prendas, um fartote. /Na mão direita um sininho / e um ar de velho menino
E logo aqui começamos a sentir a oposição que a cada passo se faz entre os tempos do Menino e do Papá, maiúsculos os dois, pois. Enquanto o maiúsculo Menino deixava só o bastante do muito que havia sido pedido, o maiúsculo Papá trazia muitas prendas, um fartote. Este maiúsculo Papá que no Natal aparecia e presentes distribuía, passou a ser conhecido por Pai Natal, um nome querido, por sinal.
O tempo deste Pai Natal é já outro e a sua longa caminhada pela vida, comprovada pelas suas barbas brancas, apesar do ar de menino, tinha-o feito chegar a um outro tempo, bem diferente. É um Pai Natal familiarizado com as tecnologias, com estratégias de marketing e de publicidade. Um Pai Natal que, como tantos papás não maiúsculos, se desdobra e multiplica as horas do dia para arranjar forma de oferecer o que não tem. Se no tempo do Menino Jesus era oferecido o q.b, relativamente ao que era pedido, no tempo do Pai Natal, as prendas são tantas que fogem pelos dedos, mesmo que para isso se tenha de endividar.
Sem raiar para o fácil moralismo, e com imagens que se aliam à narrativa, não para lhe dar cor e dizer o já dito, mas antes para ampliar sentidos e leituras que despertam a mente e o humor que faz pensar, é apresentado um Pai Natal bem dos tempos actuais que entra em cena com tudo planeado para o espectáculo não falhar e muitos fundos poder angariar. E de fundos bem precisa para a sede consumista satisfazer:
Num hábil equilíbrio entre a nostalgia, a crítica e o humor, o leitor acede, pela palavra e pela imagem, a memórias que também poderão ser suas, no caso dos mais crescidos, e é interpelado por interrogações que o fazem pensar e questionar valores e atitudes que de tão impregnados e automatizados, são muitas vezes entendidos como vulgares e inevitáveis. E a esse propósito ouçamos a voz que percorre o livro e habita páginas com cor de cumplicidade, traços de leveza e de preocupação, mas sempre portadores de energia que contagia o olhar:
E que é feito do Menino / -agora pergunto eu- / quase sem roupa, nuzinho, / que tanta alegria me deu?
Será que voltou ao presépio, / o ofício abandonou / e a amealhar cá na Terra / só o Pai Natal ficou,
Entregue a contas e a anúncios / pagos p’las televisões, / a pedir dinheiro aos bancos, / um não acabar de aflições?
Mas esta voz, com saudades da infância perdida, tempo de mistério e de parcimónia, e com um fraquinho pelo Menino Jesus, revela também simpatia pelo Pai Natal e até pena dele tem, porque muito tem de pensar onde há-de ir buscar o baguinho necessário, já que muito dinheiro é preciso para tanta coisa comprar. Só que este Pai Natal, do tempo das luzes e do néon, com tantas coisas para comprar, com tantos presentes para dar, acaba por cometer a injustiça comum de nas casas ricas deixar / sempre mais do que é preciso; / e, nas pobres, por azar, / um pouco mais do que nada / e uma tristeza a pairar.
Se o Pai Natal e Menino Jesus uma sociedade fizessem, talvez todos pudéssemos ter um bocadinho de tudo e um pouco de nada, para não faltar sempre aos mesmos e aprender que só podemos dar o que temos. E ao que parece, pelos versos desta história, aquele Menino com maiúsculas bem pode o Pai Natal ajudar:
Será que o Pai Natal vai ter tempo para ouvir esta recomendação? Talvez, folheando a memória que nestas páginas respira e lembrando-se do Menino que no seu tempo de menino existiu, e no tempo se perdeu. Talvez diga, então, como a voz destes versos: Mas que saudades eu sinto / desse tão doce Menino, / sem retrato no jornal, / que ia e vinha de mansinho. Saudades que respiram com intensa leveza no traço e na paleta de cores de Gabriela Sotto Mayor. Saudades que fazem fechar os olhos e deixam voar os afectos nas asas invisíveis de um fofo coração, em forma de puf, imagem que aconchega memórias doces e singulares.
Maria Elisa Sousa
Mãos à Arte, 28 de Novembro de 2009.
nota: Maria Elisa Sousa faz citações que, por vezes, contemplam a totalidade da componente verbal presente numa determinada página dupla, em alguns casos, optei por substituir essas citações pelas páginas referidas, mostrando não só o texto verbal como o seu (con)texto visual.
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